Wednesday, July 12, 2006

O que penso de literatura



O lingüista russo Roman Jakobson dizia que literatura é a "violência organizada contra a fala comum" [1] . Acrescento que ela é assim, e tem um lugar próprio no conjunto dos discursos humanos, pela relação especial que cria entre os temas ou assuntos tratados e os signos usados nesse tratamento. A literatura, com sua maneira própria de conciliar signos, recursos expressivos e temas, busca nos abrir os olhos, para que possamos compreender o mundo de um ponto de vista diferente do lugar comum.

Quero chamar atenção para essa maneira especial com que a literatura ajusta aquilo que é contado aos recursos lingüísticos que usa para contar. É isto o que dá à literatura sua especificidade e seu valor, e a capacidade de criar novas realidades. É o que faz a Poesia ser, como definiu Horácio[3], dulce et utile, doce e útil. Nem só agradável ou só funcional. Ao fugir do lugar comum, a literatura nos chama a atenção para o ato de nomear o mundo, para a criação, para a ação geralmente inconsciente pela qual, com o discurso, entendemos e delimitamos o universo com que nos relacionamos.

Não é à toa que Horácio apela ao paladar para definir esse ser dialético chamado de Poesia (ou literatura, como a vemos hoje), cuja tese e antítese são o dulce e o utile. A Poesia/literatura nos traz novo sabor na relação com o mundo, e nos permite senti-lo como se o provássemos diferentemente, ou pela primeira vez. Essa sensação inaugural do mundo tem o potencial de nos libertar do senso comum (o que não acontece sem violência, como notou Jakobson, já que a fala comum nos amarra e acorrenta à realidade conhecida).

É uma experiência libertadora porque amplia nossa capacidade de abarcar o universo, e expandí-lo, não apenas pela aquisição do saber convencional, mas pela possibilidade revolucionária de cogitar sobre outros mundos possíveis.

É nessa aversão ao discurso automatizado do dia a dia, na subversão do comumente falado, das construções sedimentadas do discurso cotidiano (ou na fala dos mundos especializados, da academia ou do ambiente profissional) que a literatura encontra seu lugar na comunicação humana.

A literatura, segundo Wellek e Warren[4], tem uma "seriedade aprazível"; é diferente da filosofia ou das ciências em geral porque, ao discursar docemente sobre o mundo (e mesmo o texto mais amargo é dulce, no sentido que falou Horácio), a todo tempo chama atenção para o discurso com que fala desse mundo. O texto literário é único no modo como chama atenção sobre si mesmo; ao mostrar que há maneiras diferentes de nomear o Universo, revela que este Universo é, na verdade, um entre diversos possíveis.

Ao romper a corrente da fala comum, a literatura mostra o divino (e humano, tão humano) por trás da Palavra: os signos não somente denotam a coisa falada, mas sempre carregam conotações. O substantivo é também adjetivo. A língua, ao percorrer as coisas do mundo, atribui-lhes qualidades, sexo, utilidades; lhes dá sabor.

Certamente, como afirmam Wellek e Warren, sempre há uma "referência" ligada ao texto literário, seja ele lírico, épico ou dramático. Mas uma descrição burocrática da Ilíada ou da obra de Augusto dos Anjos, ou mesmo uma má tradução de um texto poético, como a Divina Comédia, perde sua característica de "literatura". Não é a capacidade ficcional, de se referenciar a um mundo inventado o que dá ao texto literário sua dimensão. Um chiste ou uma mentira também falam de ficções, sem que sejam Poesia. Os textos biográficos de Elias Canetti e de Pedro Nava, ou o new journalism de Truman Capote e Gay Talese falam do mundo real sem que deixem de ser literatura. À medida que a obra de Freud é contestada pela ciência, sobressai sua excelente qualidade literária _ o que os alemães, únicos a conhecê-lo sem as infidelidades de seus tradutores, reconheceram ao lhe dar o prêmio Goethe de Literatura, em 1930[5].

Essa ruptura com a fala comum, em uma relação especial entre o tema e o signo usado para apresentá-lo, pode sofisticar-se, do ponto de vista semântico/lingüístico a ponto de se tornar quase intraduzível, como nos textos de Guimarães Rosa e de James Joyce; mas pode também guardar sua qualidade na maneira especial de relacionar idéias e imagens, e resistir à tradução descuidada (como se vê em certas "adaptações", ou na sobrevivência, como literatura, de textos milenares sucessivamente traduzidos por diversas civilizações). Lolita, de Nabokov, seria um exemplo desse último caso: mesmo cuidadosa tradução de Jório Dauster foi incapaz de manter as delicadas _ e intraduzíveis _ aliterações do original.

A literatura não é, pois, só o texto ficcional, mas ela sempre fala de um mundo que pode ser: ao chamar atenção para o engendramento da fala, da nomeação das coisas, tem um jogo de cintura que foge ao didatismo, e proporciona prazer por essa revelação sobre a relativa arbitrariedade do signo e das relações entre as coisas do mundo. Wellek e Warren insinuam isso ao dizer que "as afirmações contidas num romance, num poema ou num drama não representam a verdade literal", e que o "eu" do texto literário é sempre um "eu dramático, fictício"[6].

É na ficção que a literatura ou a Poesia melhor revelam seu valor e capacidade criadora, ao se mostrarem capazes até de derrubar a barreira da verossimilhança, para melhor convencer de suas possibilidades.

Para melhor falar de nossas possibilidades no mundo, que criamos e construímos continuamente, com a Palavra.

[1] cf. EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo. Martins Fontes, 1983.
[3] [4] Cf. WELLEK, R. e WARREN, A. Teoria da Literatura. Tradução: José Palla e Carmo. 3ª ed. Mira-Sintra:Publicações Europa-América, 1976. pg.34
[5] Um dos tradutores de Freud para o português, Paulo César de Souza, em entrevista recente para o Correio da Bahia (http://www.sbpsp.org.br/exposicao_Freud/Arquivos/03.doc , acessado em 24/06/2006) comenta que, por desconhecer a relação especial de Freud com a Palavra _ que lhe servia de instrumento e objeto de estudo _ , as traduções das obras do Pai da Psicanálise muitas vezes interpretaram mal ambigüidades do texto freudiano, enxergavam "certezas onde Freud não tinha".
[6] Op Cit. pg 27.